5.9.12

Diario de Mudanças


Mala aberta sobre a cama.
Roupas diversas empilhadas.
Caixas pelo chão.
Poeira pelo ar. 

Começo a organizar tudo para a mudança. Estarrecido fico com o volume de inutilidades guardadas durante a vida. Encaixoto o que realmente importa e sigo em frente. Abrir a mão de lembranças, recordações e ser menos sentimental; o pequeno apartamento não terá espaço para as caixas e caixas de fotos de outros tempos, coleções ou livros. Várias lembranças físicas já desfeitas, encaixotadas e guardadas em algum lugar da velha casa. Agora sigo apenas com a subsistência... só sobrevivência.

Mala novamente aberta.
Roupas novamente empilhadas. 
Caixas novamente pelo chão. 
Poeira pelo ar (e pelos móveis).

O apartamento vazio. Uma vida que cabe em poucas caixas. De sobre mesas e gavetas, tudo arrastado para caixas; a preocupação com organização ficará para o próximo apartamento. Um problema para meu 'eu futuro'. E a geladeira, mais vazia do que nunca.
                    
A tão comum sensação de estar esquecendo algo vai tomando conta. Mas o que realmente importa para a minha sobrevivência, agora cabe em uma mochila. Como um soldado em plena guerra.


Mala novamente aberta.
Roupas novamente empilhadas. 
Caixas novamente pelo chão. 
Poeira pelo ar (e pelos móveis).
Novo apartamento. Nova mudança.

   Os móveis montados, mas vazios. Nenhuma decoração, paredes em branco. A sensação contínua de sempre estar faltando algo; a sensação de estar vivendo em um hotel.

As roupas não estão empilhadas.
As caixas não estão pelo chão.
Mas a poeira está pelo ar...


   O novo apartamento ainda vazio. Os sons ecoam nas paredes. Uma sensação mista e confusa sobre a amplitude de espaço; o apartamento ainda é definido apenas por metros quadrados. Outros vizinhos, mesmos problemas.
   No piso, marcas da história; móveis fantasmas, manchas pelo chão, madeira bronzeada. Resquícios de outras épocas, outras pessoas, outras memórias. Em breve outros móveis; mas mesmos objetos, fotos e decorações.
   Por novas ruas passarei em minha rotina; novas visões terei, até pelas mesmas ruas que já passei. Pela janela, novos horizontes; outra paisagem, outra visão, mesma cidade. Levará dias até se acostumar com o que vejo através do vidro, e até lá persistirá a sensação de uma nova vida. Outra vida, mas mesma pessoa.
   Espero que agora persista um tempo de poucas mudanças. Ou... talvez... alguma pequena mudança venha para o bem: novas mudanças, nova vida.

30.8.12

Desmemórias

Esqueci.
Esqueci o que pensava.
Esqueci o que pensava em escrever aqui.

Esqueci o que ia fazer quando levantei da cadeira;
Esqueci o que queria quando abri a porta da geladeira;
Esqueci o que ia falar quando liguei para o seu celular.

Esqueci...
Esqueci o que que ia concluir no longo discurso que planejava...!

13.8.12

A perda


Como pude perder ela?
O que fiz de errado?!

"Só valorizamos o que perdemos"; me disseram!
Idiota fui ao não perceber meu erro.
Se tivesse me tocado antes.
Se pudesse voltar no tempo.
Onde foi que errei...?
Onde?!

Ah, o arrependimento... O que farei agora?
Não posso voltar no tempo.
Como remediar?
O que farei?!

Penso, repenso e fico tenso.
Lembro... ou tento lembrar.
Apaguei da memória.
Não há mais tempo à perder.
Como farei?!

7.8.12

Cinefilia


   Amelie era uma cinéfila. Seu verdadeiro nome era Amanda, mas Amelie soava mais Hollywoodiano - pelo menos era o que "Amelie" pensava.
   Amelie sonhava que um dia uma coruja chegaria em sua casa, lhe convocando para Hogwarts; que um dia encontraria um bilhete dourado em uma barra de chocolates, lhe concedendo uma visita à Wonka; que um dia encontraria um anel que lhe daria poderes; que seguiria por um caminho de tijolos amarelos pela Terra de Oz; e por ai segue. Despedia-se de seus amigos dizendo: "Que a força esteja com você"; sempre que tinha um problema, sussurrava: "Houston, we have a problem". Quando surgia qualquer perigo gritava: "Run, Forest, Run". E quando algo dava errado batia as mãos dizendo: "Corta!".
   Amelie decorou praticamente todas as falas dos maiores clássicos do cinema mundial; e as usava em seu dia a dia. No início apenas uma brincadeira, mas com o tempo tornou-se um vício... incontrolável. Quando Amelie ganhou uma aliança de seu namorado, ficou em total silêncio olhando-a na palma de sua mão... e depois pronunciou, com muito sentimento: "My Precious..." - e tossiu de estranho modo algumas vezes (ato que repetia frequentemente). Quando Amelie fez uma proposta de trabalho à um funcionário, disse antes de qualquer coisa: "Eu vou lhe fazer uma proposta que você não poderá recusar". Quando Amelie iniciou um Clube do Livro em sua escola, começou a primeira reunião dizendo: "A primeira regra do Clube do Livro é 'nunca fale sobre o Clube do Livro', a segunda regra do Clube do Livro é 'nunca fale sobre o Clube do Livro'". Quando Amelie foi promovida no seu trabalho, respondeu para seu chefe: "Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades" - mas seu chefe sequer gostava de filmes, e ficou na dúvida se havia feito a coisa certa. E assim iniciou-se a decadência moral de Amelie.
   Amelie progressivamente começou a comunicar-se apenas em uma pontuação, termos e fonética típica dos diálogos de filmes. Também criou uma quase certeza de que toda sua vida era filmada, como em "O Show de Truman"; e por isto evitava fazer "certas coisas". Amelie tinha uma certeza inabsoluta de que em outra vida lutou na guerra, assim como foi prisioneira de campos de concentração e piloto de avião. Com o tempo Amelie não suportou mais ir à praia, com terror de "Tubarão"; sequer andar de qualquer transporte hidroviário, com fobia de se repetir um "Titanic"; nunca mais entrara em uma avião, com um trauma não vivido de "Naufrago"; e jamais tomava sequer uma rápida ducha em um banheiro com cortinas, com receio de "Psicose".
   Amelie certo dia notou que toda sua vida realmente era "cinematográfica"; mas contrariando o esperado, em vez de buscar ajuda médica, achou que faltava apenas um detalhe para sua história ficar completa: uma morte cinematográfica. E assim Amelie planejou cada detalhe de como iria morrer: data, local, situação, últimas palavras, vestido, iluminação, etc. Resumidamente: iria ser empurrada do alto de um prédio, durante uma discussão com um (fictício) amante, caindo em frente à uma cafeteria cheia de frequentadores. Contratou maquiadora, figurantes, entre outros. Com tudo pronto, Amelie preparou-se para aquele que seria o ponto máximo no filme de sua vida: o fim desta. Fez sua última refeição... e ao atravessar a rua, para subir ao prédio, morreu atropelada por um ônibus. Apenas uma pequena nota foi publicada em um jornal de baixa circulação.

2.8.12

Afogados


João sempre tomava um copo de uísque depois do trabalho para afogar os problemas diários entre dois cubos de gelo. Um dia, o bar fechou. Então, os problemas afogaram ele entre as duas margens do fétido rio que passava em frente ao seu trabalho.

26.6.12

Uma dissertação sobre a falta de inspiração [2/2]

.[continuação...]

   Odranoel buscou em sua memória algum assunto que havia deixado cozinhando em sua cabeça. Decidiu pelo item 345P2S - código este, qual ele garantia que fazia parte de um estabelecido ordenamento de suas idéias mentais. Porém, o item 345P2S consistia da 'lua cheia'. Visto que ainda era dia, dificultaria uma escrita com mais emoção, pois não conseguiria olhar para sua branca e redonda musa inspiradora; outro fato que se somava, era que  nesta data a lua era minguante, e Odranoel não suportaria iniciar um texto que teria de aguardar até a lua certa para concluir. Assim, Odranoel decidiu, após cerca de 13 segundos, partir para outro assunto.

Uma dissertação sobre a falta de inspiração [1/2]

   Odranoel - escritor, leitor e crítico-gastronômico-amador-de-fins-de-semana - escrevia diariamente em sua máquina Olivetti Letera 82, de cor verde. Seu processo criativo consistia em um projetado e elaborado 'improviso'.
   Odranoel acordava todas as manhãs às 07:37 em ponto, descia para as ruas onde comprava um café-para-viagem em uma cafeteria na esquina, e 3 pães-de-queijo com um vendedor ambulante à duas quadras do primeiro local. Odranoel nunca viajava com seu café; e a cafeteria até vendia pães-de-queijo, mas eram de um tamanho muito maior do que os vendidos pelo ambulante - e achava uma pouca vergonha apenas 1 pão-de-queijo custar o mesmo valor de 3 em outro local... independente de seus tamanhos. Após a compra do café e dos pães-de-queijo, Odranoel seguia até um terceiro local, uma praça, onde sentava-se sempre no mesmo banco, ao lado de um coqueiro, onde tomava (e comia!) seu café-da-manhã - em dias de chuva, Odranoel molhava-se.

19.4.12

Pimenta Rosa

      Enquanto ela penteava os cabelos molhados na semiescuridão do entardecer, ele observava da cama aquele ritual fascinante. Os olhos dela desviaram dos fios para o espelho, e um meio sorriso brincou em seus lábios ao encontrar outros olhos lhe observando. Sem que precisasse perguntar, ela sabia que aquele momento era um dos que ficavam pra sempre na memória. Percorreu lentamente com os olhos o contorno do corpo em meio aos lençóis desfeitos onde há pouco estivera. Sorriu e sentiu aquele sentimento inominável percorrer todo o corpo novamente, aquele sentimento sobre o qual ela não queria pensar para não terminar o encantamento. 
     Ele observava a pele macia, os cabelos rebeldes e o sorriso... Ah, o sorriso. Malicioso de uma forma pura, com uma tristeza que ele talvez jamais conhecesse completamente. De novo pensava na pele. Nas rendas e fitas, nos tons pastéis onde há pouco se perdera, mergulhara, desfizera.  Não tinha como evitar o estremecimento quando pensava nela, quando lembrava que talvez ela jamais devesse estar ali. Mas sentia o cheiro de pimenta rosa inundando o quarto e o banheiro, e só conseguia desejar o breve retorno daquele cheiro para perto. 

     Tinham substituído o tradicional cigarro posterior por café. Café, sempre tão adequado àquela incomum plasticidade artística que os envolvia. Ela terminava o café olhando nua para o céu estrelado, da janela do apartamento, os carros passando tão perto e tão longe. O tremor parecia constante, e não seria diferente longe dele. Não podia negar que ficava deliciosamente perturbada com o cheiro da pele, do perfume, do couro das roupas dele invadindo seu nariz, seus poros, sua alma. Novamente ele a observava. 
     Dessa vez, ele sussurrou baixinho quando ela flagrou seu olhar: “Tentando gravar tua imagem.” “Na retina ou na memória?” “Na retina, na memória, na pele, no peito... em tudo.” “Você acha que eu vou fugir?” “Você se faz tão minha e tão intensa que eu sempre tenho medo que um dia você não se faça mais. E tem o abismo, esse abismo enorme que pode acabar com um sentimento porque uma sociedade que não sabe sentir não quer que aconteça” A resposta dela foi um sorriso, breve, cálido, que fez com que ele se sentisse seguro de que, mesmo depois do fim, aquele momento nunca acabaria. 

     Ele se perdia em meio aos livros de uma mesa e ela observava do sofá, aninhada e enrolada como uma gata, também lendo. Ele tinha consciência do fascínio que exercia na jovem mulher estirada no seu sofá, que o observava ler, anotar e produzir, disfarçadamente. Ela apenas não disfarçava o enlevo que aquele homem tão completo tinha sobre ela. Não sabia se era instinto que a fazia permitir que seu cheiro ficasse nas páginas que manuseava enquanto trocava observações sagazes com ele. Mas sabia que era dela, e só dela, que ele lembraria quando abrisse aqueles livros de novo, e o odor da pimenta rosa o envolvesse mais uma vez.

     Eles não se preocupavam com o fim, porque incomparavelmente difícil havia sido o começo. Deixar que acontecesse agora era fácil, era espontâneo... O cuidado dos gestos iniciais se perdera. O que restou, e ali estaria até o fim, era a intensidade vívida de cada momento. Um olhar na janela, um poema sussurrado. Os pequenos detalhes e as grandes semelhanças que fizeram com que eles fossem um... E talvez um dia os desfizesse. 

3.4.12

Telefone desfixado

   Acordei assustado com um barulho estranho. Tinha aquela impressão de que o som vinha de dentro do meu apartamento. Levantei em um pulo e abri a porta; passei pelo corredor tentando adivinhar de onde viria aquele som. Pressupus a direção, depois de muitos virares de cabeça tentando de uma forma totalmente instintiva gerar o melhor ângulo para que o som se propagasse para dentro de minhas orelhas - como um cão que gira a cabeça quando ouve algo desconhecido. Definitivamente o som vinha da minha sala.
   Fui seguindo o termitente som como quem segue o bip-bip de uma bomba relógio. Passo a passo, lentamente, me aproximei de uma mesinha, ao lado de uma cadeira. Estendi a mão, com todo o cuidado humanamente possível, e retirei uma jaqueta - jogada em algum momento qual me falha a memória - de sobre onde certamente vinha o som. Qual surpresa foi ao reparar que aquilo aparentemente era um telefone-fixo.

26.3.12

Idade


Um dos maiores choques na vida de uma mulher é o momento em que ela se olha no espelho e percebe que está envelhecendo: a primeira ruga é sempre um divisor de águas. Digo isso com propriedade pois, há alguns dias atrás, isso aconteceu comigo. Um pouco antes de dormir, depois de colocar o pijama e tirar a maquiagem, parei na frente do espelho e fiquei pensando: quem é esta jovem senhora que está ali do outro lado? Sim, eu estava me chamando de senhora, no auge dos meus 27 anos de idade!

Eu sei, neste momento muitas mulheres devem estar furiosas, abandonando este texto, enquanto esbravejam contra esta ‘menina’ que vos escreve. “Ela tá se achando velha antes dos 30? Imagina quando chegar aos 60!” – dirá uma. “Isso é uma falta de respeito comigo, se essa garota pensa que está velha aos 27, o que deve pensar sobre mim, que tenho 54?” – pensará a outra.

Mas, queridas leitoras, fiquem e compreendam meu raciocínio. Se vocês já passaram pelo doloroso despertar para  a maturidade, tentem se lembrar da primeira vez em que perceberam que o tempo havia passado. Não importa a idade nem a quantidade de rugas no rosto. Lembrem do sentimento. Revivam este sentimento por um instante. Recordem-se de como foi doloroso descobrir tal fato e que não fazia diferença nenhuma se seu namorado, marido ou até sua irmã mais nova dissessem que você continua linda e maravilhosa e nem dá para ver as marcas de expressão.

Pois é, a gente sempre se sente igual. Afinal, somos mulheres e, para nós, a autoestima é fundamental. Não é só uma questão de beleza, é muito mais de aceitação. Por isso, como eu ainda não estou aceitando a minha descoberta, vou ali comprar uns creminhos anti-idade e já volto. Tchau. 


Originalmente publicado no jornal Correio do Povo de 22 de março de 2012.

13.3.12

Bicicleta de Lomba

Olhei para o lado e vi minha bicicleta escorada na parede, com os pneus murchos e o banco estragado.
Comprei esta bicicleta para facilitar meu trajeto até o trabalho; qual já estava facilitado, pois me mudei a pouco tempo para mais perto, à fim de evitar perder tanto tempo em trânsito - afinal de contas, eu poderia pegar estas cerca de 3h de trânsito diárias e gastar em 'nadismo'.

Andei alguns dias de bicicleta até a empresa, o que tornou o trajeto ainda mais rápido e prático. O vento na cara me proporcionava uma sensação de liberdade, mas estragava meus cabelos (os poucos que ainda restam). Na realidade também não me permitia andar lendo (sim, aprendi a fazer isto à algum tempo, para aproveitar ainda mais o tempo "livre"). Mas a bicicleta acabou estragando e foi mais fácil deixá-la encostada na parede do que fazer a manutenção necessária.

6.3.12

Ocupada demais

Ana era uma jovem sonhadora, recém chegada à segunda década de vida. Apesar da curta viagem, o caminho lhe proporcionara vários obstáculos que lhe calejara as mãos...e o coração. Tinha tantos sonhos, mas o único que lhe tirava o sono era o amor não correspondido de seu ex-namorado, Rafael.

Ana e Rafael tiveram, por um ano e pouco, o frescor da paixão ardendo dentro de si e com isso saborearam doces e incríveis momentos. Ana não esquece, nem Rafael. Por mais que o destino tenha os separado, a saudade visita e o tempo não apaga o que da vida já se construiu.

Um relacionamento tão jovem e encantador como esse, normalmente é conturbado na despedida. Ambos haviam experimentado pela primeira vez na vida o amor, a rosa...mas também os espinhos e, nesse sentido, Ana não havia digerido os espinhos. Ainda chorava o desejo, mesmo que seu primeiro amor não tivesse nada além de memórias dentro de um magoado coração. À cada novo dia - que parecia ser mais longo - e à cada noite perdida de sono, sua autoestima descia vários degraus. Sentia-se menor...incapaz de amar e ser amada, apesar de no fundo saber que era uma grande garota. Sonhadora porém cultivadora dos pequenos detalhes, sedenta pela vida e pelo amor que sentia-se capaz de proporcionar. Sabia de suas qualidades, mas nesse momento Ana só enxergava um ponto escuro em meio à folha totalmente branca.

Ana em sua triste empreitada conheceu Marcelo, que apesar de ouvir os lamentos de Ana por longos dias e oferecer-lhe o ombro, a palavra e a cumplicidade, tinha dentro de si a certeza que poderia dar à Ana o que de melhor aquela jovem merecia. Sabia também que ultimamente Ana não dava atenção pra rapaz nenhum, fosse ele malandro ou um gentleman, como ele mesmo. Mas nunca desistiu, fez o que de melhor podia e mesmo que tentasse, Ana estava ocupada demais...

Ocupada demais carregando suas pesadas malas, cheias de pesos desnecessários. Por vezes cansada, abria suas malas e remexia tudo ali dentro, mas nada retirava. Estava ocupada demais alojando dentro de si o que já deveria ter ido embora há algum tempo, e tão ocupada não tinha tempo para os outros... nem pra Marcelo. Havia tornado-se refém de seus medos, de ficar sozinha, mesmo que a solidão já lhe habitasse por tempos.

Ana acomodou-se na dor e criou laços com suas dificuldades. Por vezes proferia: "Eu sou assim -e não posso mudar", criando uma máscara que escondesse sua face, de seu coração. De reconhecer que havia sido derrotada e a partir dessa etapa começar a superar sua perda. Mas Ana estava ocupada demais, ocupada demais em viver a vida de seu ex-namorado, antes mesmo da sua. Dizia amá-lo tanto e, mesmo na dor, acreditava poder proporcionar à ele uma grande história de amor, ainda que não pudesse fazer isso a si mesma.
Marcelo partiu e, com ele, partiram novos encontros e desencontros.
Ana? Bem, Ana segue sua luta...contra suas malas. E nelas um bilhete deixado por Marcelo:

"Andar na direção do outro é também fazer uma viagem. Mas não leve muita coisa. Não tenha medo das ausências que sentirá. Ao adentrar o território alheio, quem sabe assim os seus olhos se abram para enxergar de um jeito novo o território que é seu. Não leve os seus pesos. Eles não lhe permitirão encontrar o outro."

21.2.12

Descasamento


Casou-se. Esse poderia ser o final feliz de sua história, mas para Marta era apenas o começo. Em poucos meses, descobriu que a rotina era traiçoeira e sempre dava seus golpes quando todos estavam desatentos - no café em um domingo de manhã ou depois do futebol na TV durante a noite de quarta-feira. Nesses momentos, em que tudo parecia calmo, a monotonia da vida à dois se sobressaía, explodindo como uma bomba de hidrogênio.

- É sempre a mesma coisa, você não se dá o trabalho de levantar desse sofá e colocar o copo na pia, Eugênio.

Entre copos sujos e meias espalhadas pelo chão, o casamento desandou. Eugênio saiu de casa, Marta foi morar com a mãe. O antigo ninho de amor se transformou em um museu de recordações tão dolorosas que a maior briga era para se desfazer do imóvel.

- Eu fico com o seu carro e você me paga o resto do apartamento com as joias da sua mãe.

- Nem pensar, nas joias da mamãe você não toca!

Enquanto brigavam, não repararam naqueles dois ratinhos que encontraram no quarto do ex-casal a oportunidade de uma vida tranquila. Roedores que eram, não se preocupavam com o amor, a rotina ou o comportamento do companheiro - queriam apenas um teto para procriar e manter seu legado em segurança. Depois de cinco anos, o local estava infestado. Com a decisão judicial, Marta foi a primeira a perceber que o patrimônio não lhe pertencia mais: por usucapião, fora concedido aos asquerosos mamíferos, que a esta época já estavam chegando à casa dos milhares.

- Eugêêêênioooo! Venha ao apartamento imediatamente! Ele foi invadido por ratos! Isso é tudo culpa sua!

Eugênio, ao verificar o  ocorrido, pensou em quanto aquele casamento e todas as suas consequências haviam lhe trazido problemas. Era mais feliz quando estava solteiro e não tinha que lidar com ratos imundos e uma ex-mulher histérica. Resolveu mandar dedetizar, para que Marta o deixasse em paz. Todavia, o ex-casal não esperava que esse fato mexeria tanto com suas vidas.

Kléber, o dono da empresa de dedetização, era um homem gentil, cortês e tinha lá o seu charme. Com bom papo e muita atenção para dar, logo encantou Marta. Era tudo o que ela precisava. Mas também era tudo o que Eugênio queria, mesmo sem saber. Acostumado àquele tipo de experiência, Kléber logo convenceu os dois sobre a normalidade da situação: não era algo sobre o amor e seus subprodutos; era uma relação de prazer, aventura e aceitação.

Em pouco tempo, o apartamento estava pronto para ser habitado por Marta, Kléber e Eugênio. E, por hora, todos viveram felizes.

14.2.12

Cabide em forma de cadeira

   Por um canto de meu quarto paira uma cadeira. Na real poucas vezes sentei nela. 
   Ela serve mesmo como cabide!

   Até cogitei comprar um daqueles cabideiros tradicionais, verticais, com várias pontas. Mas fiquei na dúvida entre um de metal e um de madeira, e ainda tinha a questão da cor; mas claro, um cabideiro tradicional destes não combinaria com o estilo do meu quarto. Uma cadeira tem mais irreverência.

   A cadeira, além do estilo descontraído e jovial, tem outros benefícios: serve também como 'cadeira'. Quando necessário, é só tirar todas as roupas empilhadas e jogá-las sobre a cama e sentar-se. Algo tipo um 2 em 1. Tudo bem, as roupas ficam meio amassadas, mas é bem prático. Garanto!

   Eu andei procurando outros objetos similares para tal utilização; pensando em mudar um pouco o feng-shui do quarto. Até me recomendaram uma esteira ergométrica - garantiram que em pouquíssimo tempo ela funciona super bem como cabide -, mas não achei que combinaria com a cor da minha parede.


31.1.12

Vidas secretas


Ele era um cachorro. Um simples cachorro sem raça definida que se contentava em ser alimentado todos os dias e ganhar algum brinquedo de vez em quando. Olhava o mundo através da janela do apartamento em que vivia junto aos seus donos e mais um tímido gato que não gostava de ser perturbado. Tanto faz, ele não era fã de gatos, mesmo. A única coisa que o intrigava era aquele casal com quem compartilhava o mesmo teto. Era um casal estranho em um casamento mais estranho ainda. Tratavam-se com educação enquanto estavam juntos, principalmente na frente de visitas, mas escondiam, um do outro, mais do que a insatisfação no relacionamento. Escondiam como buscavam aquilo que faltava na convivência diária.

O dono, por exemplo, passava as madrugadas em frente ao computador, no quarto de visitas, enquanto a esposa dormia, envenenada pelos tranquilizantes. Às vezes, ele saía abruptamente no meio da noite e voltava cerca de uma hora depois, com um grande sorriso no rosto. A dona, por sua vez, sempre trazia amigas muito íntimas, com as quais passava as tardes trancada no quarto principal. Até aparentavam viver uma vida tranquila e alegre mas, no fundo de seus olhos, aquele cachorro percebia que as coisas não eram tão boas assim. Seu instinto canino lhe dizia que não havia felicidade naquele lar.

Mas era apenas um cão e achava complexo demais pensar nos mistérios das relações humanas. Para ele, bastava sobreviver. Não conhecia outra forma de ser feliz. Comer, brincar e dormir eram os seus principais objetivos. Por isso, preferia não gastar seu tempo tentando compreender seus donos. Por mais estranhos que fossem, resolveriam seus problemas sozinhos. Nenhum vira-latas no mundo poderia ajudá-los.

30.1.12

Sonho


Qual é o seu sonho?

Tem quem quer ser atriz. Tem quem quer ser jogador de futebol. Tem quem quer ser astro do rock. Designer de games. Piloto de avião. Escritor. Rico e famoso. Tem quem quer ser só feliz.

Todo sonho, a princípio, soa impossível. Fulaninha quer ser isso, mas não faz o tipo. Beltraninho quer ser aquilo, mas aonde ele vive não existe oportunidade.

A única maneira de destruir a alma de alguém é dizer que o sonho é impossível, ridículo, estúpido ou sem sentido.

Um sonho é uma coisa profunda e íntima, que dá um frio na barriga só de pensar que possa se realizar. É difícil acreditarmos honestamente que ele possa se tornar realidade, por isso deixamos ele guardado em uma gaveta, de onde só tiramos naqueles momentos da noite, antes de dormir, e se fica imaginando como seria se acontecesse...

Querendo ou não querendo, nós deixamos de ser crianças. Deixamos de acreditar em contos de fada e trocamos a inocência pela malícia. Mas a criança que fomos nunca nos abandona. Lembra dos sonhos que aquela criança tinha? De como ela imaginava como seria realizá-los? Isso faz parte daquilo que não nos abandona. A única coisa que realmente vai embora é aquela inocência de acreditar que realmente, de verdade, somos capazes de transformar aquele sonho impossível, ridículo, estúpido e sem sentindo... em algo palpável.

Um sonho não tem idade, um sonho não tem preconceitos e, mais do que tudo, um sonho não tem limites.

Mas, diferente do que algumas pessoas vão te dizer, é ruim. É terrível. Você nunca vai passar por tanta dor quanto a que se passa quando se persegue um sonho. O suor e o sangue dado que, por muitas vezes, não resulta em nada. Toda a força que se precisa para tentar mais uma vez. Todas as pessoas dizendo que você não vai conseguir. A tentação de de desistir...

Tudo isso para passar por aquele pequeno instante, aquele segundo magnífico em que você vai cair de joelhos no chão e gritar, enquanto segura as lágrimas, "eu consegui".

Pra resumir, sonhar é horrível. O bom é realizar.

24.1.12

Um dono sem cão

   A alguns dias fiz um bem para o corpo que tanto carrega esta minha cabeça, e resolvi dar uma corrida. Tipo esportista de fim de semana...

   Alonguei-me por alguns míseros segundos - apenas por descargo de consciência - e desci as escadas do apartamento. Abri o portão, respirei fundo e iniciei aquela que seria uma longa e memorável corrida - ao melhor estilo Forest Gump.

   Corri nem 100 metros, quando um cão surgiu ao meu lado. Um belo cachorro; preto e branco, uma cara amigável; até lembrava um border collie. O cão me olhou, e ficou me seguindo. Não dei atenção, imaginei que logo surgiria seu dono; e continuei em meu trajeto muito bem não-planejado. E o cão me seguindo. Foi divertido, correndo com um cachorro, uma bela companhia. Foi legal... até que comecei a me sentir 'seguido'. Cansei. Tentei tocar o animal, mas ele sempre voltava a me seguir. Tentei xingá-lo, bater o pé no chão, correr eu de trás dele. Mas nada, o animal era teimoso. Após repetir os xingares e bateres-de-pé-no-chão por umas 10 vezes, desisti. Continuei correndo; pensei: uma hora ele cansa. Ah, doce ilusão. O animal tinha muito mais fôlego que eu.

17.1.12

Etapas da Criação

Bloqueio criativo. Morde a caneta, amassa o papel, liga o computador. Bloco de notas, Microsoft Word ou qualqe tela preta com letras em verde neon que lembra Matrix e que só quem lida com computação sabe o nome.

Nada.

Não é a falta de ideias. Se muito, é o exato oposto. Doze mil, quinhentos e noventa e dois assuntos diferentes, mas nenhum deles está maduro o suficiente para valer a pena.

Rasga um outro papel. Senta ao contrário, de cabeça para baixo, ou vai para algum lugar alatório e estranho, como o telhado da lavanderia, que possa ser o canalizador de alguma energia criativa. Briga com algumas pessoas, só pra descontar a frustração. Fica jogando aquela bolinha de borracha na parede compulsivamente.

Não, não deu certo.

Mas é teimoso demais pra desistir! Dá aquela conferida no espelho, vestindo a expressão mais humilde que encontrar, e sai em busca de ajuda. Ou procura outros trabalhos que possam servir como 'referência', os conteúdos e criações dos outros. De alguma maneira, procura a maldita inspiração.

A chuva, a lua, um pôr do sol. Esses clichês se tornaram óbvios por algum motivo, devem ter o seu valor.

Mais um grande nada.

Aí é a hora do acesso de fúria. Nem queria mesmo, é inútil demais eu me preocupar com essas coi...

Isso! A ideia! Aquela perfeição, aquela... aquela! Ah, é grande demais para descrever!

Papel, computador, guardanapo, mão... qualquer coisa, qualquer coisa para prender a ideia no mundo físico!

Caneta! Onde é que está a caneta?

Toca o telefone.

A ideia se parte em um milhão de pedaços.

Droga.

Vai ter que começar tudo de novo.

10.1.12

Distância que faz ruir

Não se trata de egoísmo. Viver de "dentro pra fora" é questão de sobrevivência.
O sábio mesmo já disse: "Quem vive se buscando, nunca para de chegar".

As felicidades de fachada são tantas e irreais, tão atraentes e fascinantes,
que o fardo de viver a aventura das questões humanas é realmente pesado..
Não é preciso tanta vivência pra experimentar o sabor amargo das decepções que nos causam dor,
Mas não te tornes escravo dos próprios limites, a dor é propriedade da vida.

Desde o nascimento é assim, saio do aconchego caloroso do útero maternal
para o avesso de um mundo viral. Choro, é claro.

Entretanto o ponto alto do limite humano é a própria ausência.
Diga-me tuas piores mazelas e te direis o quanto te ausentastes de ti.
Quanto mais longe arrisco-me fora de mim mesmo, maiores são as decepções e os erros.
Praticando o que não somos vivenciamos a fragilidade que somos.


3.1.12

Desejos íntimos

Sentou naquele habitual banco de praça com seu habitual almoço, disposto de forma aleatória dentro de sua marmita. Comeu, sem muito entusiasmo. Olhou em volta, esperando encontrar alguém interessante. Viu ela, bela como sempre, atravessando a rua no mesmo horário de todos os dias, para pegar seu luxuoso carro que ele mal sabia pronunciar o nome. Pensou em como ela ficava cada dia mais estonteante, sempre usando roupas esvoaçantes de grifes famosas e joias tão brilhantes que quase ofuscavam sua beleza natural. Não, para ele, ela jamais seria ofuscada. Tinha um corpo escultural e uma cor de pêssego que o faziam sonhar acordado com o dia em que poderia tê-la em seus braços. Ele, aquele ogro semi-analfabeto e sem futuro, beijando os lábios carnudos daquela afortunada princesa, tirando-lhe a roupa com violência e possuindo-a selvagemente em uma noite de luxúria. Enquanto pensava em tudo isso, olhava-a fixamente, sem o menor pudor.

Ela, por sua vez, retribuía com um sorriso no canto da boca, que oscilava entre a timidez e a malícia. Sabia que ele a desejava e queria alimentar aquela aventura imaginária. Desde o primeiro dia em que o viu ali, sentado no banco da praça em frente ao condomínio onde morava, percebeu o olhar fixo dele em seu corpo, como se estivesse despindo-a completamente. Incomodou-se, no início, com o jeito descarado daquele sujeito maltrapilho, suado, exalando um forte odor de quem passou o dia trabalhando debaixo do sol escaldante em alguma construção. Incomodou-se tanto que passou a vê-lo em seus pesadelos, perseguindo-a e tocando-a com aquelas mãos sujas e fétidas. Com o tempo, o pesadelo tornou-se algo melhor. Passou a criar fantasias com o pedreiro. Sempre fora criada para se tornar uma dama da alta sociedade, casando-se com um rico empresário que lhe dava tudo, mas ela nunca se sentia completamente satisfeita. Passou a aguardar ansiosamente o momento em que atravessava a rua para pegar seu carro, estacionado estrategicamente naquele lugar. Começou a usar roupas cada vez mais curtas e transparentes, tentando manter o desejo daquele homem, que agora fazia com que ela se sentisse mais mulher. Jamais contaria a alguém esses seus pensamentos, jamais os colocaria em prática. Contentava-se em ser admirada, desejada. Contentava-se em sentir-se uma devassa por dentro.