19.4.12

Pimenta Rosa

      Enquanto ela penteava os cabelos molhados na semiescuridão do entardecer, ele observava da cama aquele ritual fascinante. Os olhos dela desviaram dos fios para o espelho, e um meio sorriso brincou em seus lábios ao encontrar outros olhos lhe observando. Sem que precisasse perguntar, ela sabia que aquele momento era um dos que ficavam pra sempre na memória. Percorreu lentamente com os olhos o contorno do corpo em meio aos lençóis desfeitos onde há pouco estivera. Sorriu e sentiu aquele sentimento inominável percorrer todo o corpo novamente, aquele sentimento sobre o qual ela não queria pensar para não terminar o encantamento. 
     Ele observava a pele macia, os cabelos rebeldes e o sorriso... Ah, o sorriso. Malicioso de uma forma pura, com uma tristeza que ele talvez jamais conhecesse completamente. De novo pensava na pele. Nas rendas e fitas, nos tons pastéis onde há pouco se perdera, mergulhara, desfizera.  Não tinha como evitar o estremecimento quando pensava nela, quando lembrava que talvez ela jamais devesse estar ali. Mas sentia o cheiro de pimenta rosa inundando o quarto e o banheiro, e só conseguia desejar o breve retorno daquele cheiro para perto. 

     Tinham substituído o tradicional cigarro posterior por café. Café, sempre tão adequado àquela incomum plasticidade artística que os envolvia. Ela terminava o café olhando nua para o céu estrelado, da janela do apartamento, os carros passando tão perto e tão longe. O tremor parecia constante, e não seria diferente longe dele. Não podia negar que ficava deliciosamente perturbada com o cheiro da pele, do perfume, do couro das roupas dele invadindo seu nariz, seus poros, sua alma. Novamente ele a observava. 
     Dessa vez, ele sussurrou baixinho quando ela flagrou seu olhar: “Tentando gravar tua imagem.” “Na retina ou na memória?” “Na retina, na memória, na pele, no peito... em tudo.” “Você acha que eu vou fugir?” “Você se faz tão minha e tão intensa que eu sempre tenho medo que um dia você não se faça mais. E tem o abismo, esse abismo enorme que pode acabar com um sentimento porque uma sociedade que não sabe sentir não quer que aconteça” A resposta dela foi um sorriso, breve, cálido, que fez com que ele se sentisse seguro de que, mesmo depois do fim, aquele momento nunca acabaria. 

     Ele se perdia em meio aos livros de uma mesa e ela observava do sofá, aninhada e enrolada como uma gata, também lendo. Ele tinha consciência do fascínio que exercia na jovem mulher estirada no seu sofá, que o observava ler, anotar e produzir, disfarçadamente. Ela apenas não disfarçava o enlevo que aquele homem tão completo tinha sobre ela. Não sabia se era instinto que a fazia permitir que seu cheiro ficasse nas páginas que manuseava enquanto trocava observações sagazes com ele. Mas sabia que era dela, e só dela, que ele lembraria quando abrisse aqueles livros de novo, e o odor da pimenta rosa o envolvesse mais uma vez.

     Eles não se preocupavam com o fim, porque incomparavelmente difícil havia sido o começo. Deixar que acontecesse agora era fácil, era espontâneo... O cuidado dos gestos iniciais se perdera. O que restou, e ali estaria até o fim, era a intensidade vívida de cada momento. Um olhar na janela, um poema sussurrado. Os pequenos detalhes e as grandes semelhanças que fizeram com que eles fossem um... E talvez um dia os desfizesse. 

3.4.12

Telefone desfixado

   Acordei assustado com um barulho estranho. Tinha aquela impressão de que o som vinha de dentro do meu apartamento. Levantei em um pulo e abri a porta; passei pelo corredor tentando adivinhar de onde viria aquele som. Pressupus a direção, depois de muitos virares de cabeça tentando de uma forma totalmente instintiva gerar o melhor ângulo para que o som se propagasse para dentro de minhas orelhas - como um cão que gira a cabeça quando ouve algo desconhecido. Definitivamente o som vinha da minha sala.
   Fui seguindo o termitente som como quem segue o bip-bip de uma bomba relógio. Passo a passo, lentamente, me aproximei de uma mesinha, ao lado de uma cadeira. Estendi a mão, com todo o cuidado humanamente possível, e retirei uma jaqueta - jogada em algum momento qual me falha a memória - de sobre onde certamente vinha o som. Qual surpresa foi ao reparar que aquilo aparentemente era um telefone-fixo.