19.6.13

A verdade

Chovia e as gotas de chuva escorriam pela janela enquanto ela, seminua, olhava para fora fitando o horizonte. Seu pensamento estava nele e como o relacionamento dos dois havia se desgastado. Olhou para trás e observou-o deitado sobre a cama, enrolado aos lençois de seda branca. Pensou que o sexo não era mais como antes: quente, selvagem, cheio de  malícia e palavras picantes ao pé do ouvido. 

Observou-o quando ele se levantou e vestiu a roupa. Enquanto isso, procurava, sobre o bidê, sua carteira de cigarros. Sentou e fumou, lentamente. Esperou que ele saísse do banheiro e preparou-se para contar-lhe sobre seus sentimentos, mas não teve coragem. Ele, no entanto, percebeu que algo estava errado e perguntou-a sobre o que estava acontecendo. Ela tentou falar mas, surpreendentemente, caiu em prantos. Ele não entendeu o ato repentino, mas tentou consolá-la, sentando-se ao seu lado e passando a mão sobre seus longos fios morenos. Ela recuou, não desejava aquele carinho. Ele estranhou. 

Pensou que havia feito algo que a desagradara. Forçou-a a contar qual era o problema. Ela titubeou mas, enfim, falou. Estava apaixonada por outro. Mantinham uma relação a pouco tempo, o suficiente para ela ter certeza do que queria. Ele ficou atordoado, não podia perdê-la. Sentou na outra ponta da cama, com as mãos sobre a face, deixando-a com um enorme sentimento de culpa. Porém, já era tarde: estava feito. 

Vestiu-se. Procurou uma sacola, juntou algumas roupas que sempre deixava junto às coisas dele. Fitou-o, pela última vez, beijando-o na face. Abriu a porta e desceu as escadas, lentamente. Enfrentou a chuva, com um pensamento na cabeça: esta era a última vez que passaria por aquele local.

18.6.13

Corrida matinal

Fazia sua corrida matinal observando as folhas secas caírem no chão enquanto os pássaros cantavam em cima das árvores. Corria em passos largos pelo bosque - um hábito diário - quando foi surpreendido por um grunhido fora do comum, vindo de dentro da mata fechada. 

Ficou com medo em um primeiro momento e pensou em fugir, mas a curiosidade foi maior e ele se aproximou, aos poucos , do som que ouvira. Pensou poder ser um lobo machucado ou algo parecido, mas não existiam lobos naquela região. Seria uma capivara? Um porco selvagem? Ou até mesmo uma pessoa em apuros? 

Aproximou-se um pouco mais e viu as folhas dos arbustos em torno de si movimentarem-se num balanço desesperado. Sentiu pavor e pensou novamente em fugir, mas já era tarde demais. Ficou atordoado com o que viu. Esfregou os olhos com força, para ter certeza de que estava enxergando direito. Não quis acreditar, aquilo não poderia existir. Beliscou-se para ter certeza de que não estava sonhando. Mas não, era verdade e estava ali na sua frente: um pequeno dinossauro, que quase atingia sua altura. 

De braços curtos e corpo robusto, parecia gemer de dor. Olhou para os lados e não encontrou nenhum vestígio de outros dinossauros por perto - pelo menos não aqueles que conhecia por assistir alguns documentários televisivos sobre o assunto. Sentiu pena do pobre bicho, ali, perdido e agonizante. Tentou aproximar-se para ver se encontrava alguma ferida, mas o animal, inseguro, ameaçou correr para longe. Recuou. De longe, observou um corte sobre a pata esquerda. Quis pedir ajuda, mas imaginou que ninguém acreditaria em sua história. Não havia o que fazer. 

Refletiu por alguns momentos e resolveu que faria de conta que aquela história era apenas uma invenção de sua mente. Para não se sentir culpado, criou um final feliz, onde ele coletava algumas plantas curativas e aplicava sobre o machucado daquele ser que, agradecido, soltava um curto som de felicidade e embrenhava-se no meio da floresta . Foi embora de consciência tranquila, dirigindo-se normalmente para casa para preparar-se para mais um dia de trabalho.

16.6.13

Feiticeira Inverno

O seu elemento era o ar. Mas as suas maiores epifanias e o seu quase nirvana se davam na água do banho. Tudo era planejado: a temperatura, a luz do entardecer, a música alta no rádio.
Escorria a água quente na pele cansada e o som do suspiro casava com perfeição com o ambiente. Formava-se a espuma na pele aquecida e o som da respiração cadenciava. Molhavam os cabelos grudados na pele delicada e o som da água envolvia.
Era a luz, tinha certeza: era a luz. Diáfana e efêmera. Luz palpável como poesia. Que entrava pelos poros e escrevia versos como tinta no papel. Mas era também o cheiro e a maciez. Do sabonete e da própria pele. A suavidade descia em ondas nos caracóis do cabelo e nas curvas da pele.
Acontecia o ritual. Fora, a água levava o velho. Dentro, a energia movimentava o novo. Espalhava-se o calor. De cada poro até o coração. Coração de folhas secas e ventos de outono, frio de inverno. Coração de tanto amor que não sabia amar um alguém.
Enquanto a toalha tocava o corpo, toda ela era coração. Toda ela músculo involuntário que pulsava no ritmo da música. Toda ela som. E assim ela sente cada sensação na intensidade máxima, cada deslizar do creme na pele macia.
Embalam-se suavemente as rendas da cortina. Contrastam nitidamente as rendas escuras da lingerie e a pérola da pele. Amarram-se suavemente as fitas, formando laços nas coxas macias. Embala-se suavemente todo o corpo.
Os pensamentos dividem-se em lembrar o que foi e imaginar o que não foi. Um verso no rádio capta a atenção e ela deseja ouvir que também ela tem ares de milonga. Sabe, lá no fundo, que tem o sabor do tango. Prolonga o êxtase do momento desembaraçando suavemente os cabelos, sentindo caírem nos ombros, enquanto a toalha vermelho-sangue escorre até o chão. Dança, no ritmo que vem da carne da alma e se espalha no ar.
Olhos semiabertos. Sempre achou que no entardecer se vê melhor porque se olha para dentro.
Enrola-se suavemente a toalha no corpo. Cala-se o rádio e os pés tocam céleres o piso frio até o quarto. Cerra-se a porta e a toalha volta a escorrer vermelha até o chão. Cessa o silêncio e a música toma o ar.
Ela acende o incenso de absinto, perfuma o ar e se reintegra ao seu elemento. Ao escurecer, dança com o incenso na mão. O perfume toma o ar. Para em frente ao espelho e se observa dançar, os movimentos da pele nua tocada pela renda. Os olhos no espelho são fogueiras. Fascínio. Toda ela é magia de absinto.
Bebe e se embriaga em mim.

Acende a vela e observa a rosa formar a sombra sedutora na parede. Pega papel e lápis. Já não pode mais. Precisa executar o feitiço e derramar as palavras como mágica no papel, para entorpecer os sentidos como as mais poderosas poções. 

5.9.12

Diario de Mudanças


Mala aberta sobre a cama.
Roupas diversas empilhadas.
Caixas pelo chão.
Poeira pelo ar. 

Começo a organizar tudo para a mudança. Estarrecido fico com o volume de inutilidades guardadas durante a vida. Encaixoto o que realmente importa e sigo em frente. Abrir a mão de lembranças, recordações e ser menos sentimental; o pequeno apartamento não terá espaço para as caixas e caixas de fotos de outros tempos, coleções ou livros. Várias lembranças físicas já desfeitas, encaixotadas e guardadas em algum lugar da velha casa. Agora sigo apenas com a subsistência... só sobrevivência.

Mala novamente aberta.
Roupas novamente empilhadas. 
Caixas novamente pelo chão. 
Poeira pelo ar (e pelos móveis).

O apartamento vazio. Uma vida que cabe em poucas caixas. De sobre mesas e gavetas, tudo arrastado para caixas; a preocupação com organização ficará para o próximo apartamento. Um problema para meu 'eu futuro'. E a geladeira, mais vazia do que nunca.
                    
A tão comum sensação de estar esquecendo algo vai tomando conta. Mas o que realmente importa para a minha sobrevivência, agora cabe em uma mochila. Como um soldado em plena guerra.


Mala novamente aberta.
Roupas novamente empilhadas. 
Caixas novamente pelo chão. 
Poeira pelo ar (e pelos móveis).
Novo apartamento. Nova mudança.

   Os móveis montados, mas vazios. Nenhuma decoração, paredes em branco. A sensação contínua de sempre estar faltando algo; a sensação de estar vivendo em um hotel.

As roupas não estão empilhadas.
As caixas não estão pelo chão.
Mas a poeira está pelo ar...


   O novo apartamento ainda vazio. Os sons ecoam nas paredes. Uma sensação mista e confusa sobre a amplitude de espaço; o apartamento ainda é definido apenas por metros quadrados. Outros vizinhos, mesmos problemas.
   No piso, marcas da história; móveis fantasmas, manchas pelo chão, madeira bronzeada. Resquícios de outras épocas, outras pessoas, outras memórias. Em breve outros móveis; mas mesmos objetos, fotos e decorações.
   Por novas ruas passarei em minha rotina; novas visões terei, até pelas mesmas ruas que já passei. Pela janela, novos horizontes; outra paisagem, outra visão, mesma cidade. Levará dias até se acostumar com o que vejo através do vidro, e até lá persistirá a sensação de uma nova vida. Outra vida, mas mesma pessoa.
   Espero que agora persista um tempo de poucas mudanças. Ou... talvez... alguma pequena mudança venha para o bem: novas mudanças, nova vida.

30.8.12

Desmemórias

Esqueci.
Esqueci o que pensava.
Esqueci o que pensava em escrever aqui.

Esqueci o que ia fazer quando levantei da cadeira;
Esqueci o que queria quando abri a porta da geladeira;
Esqueci o que ia falar quando liguei para o seu celular.

Esqueci...
Esqueci o que que ia concluir no longo discurso que planejava...!