20.12.11

Navalha

Ela olhou pra imagem no espelho mais uma vez. Viu olhos que não eram dela. Viu bagagens que não eram suas. Sentiu ao tocar no vidro uma frieza que não refletia as chamas que a consumiam em dor e inspiração. Sentiu nas pontas dos dedos a frieza da navalha. Desviou lentamente o olhar do espelho para o alabastro dos pulsos e sentiu a lâmina pesar mais do que nunca em sua mão.

Teve consciência da angústia do mundo que se agitava dentro dela. Era, então, irrelevante que nada matasse sua sede e sua garganta secasse em meio ao cinza indefectível de uma cidade que cheirava a indiferença. As pessoas nas ruas se moviam como robôs, e ela também. Mas as pilhas do seu controle remoto haviam se esgotado. Ela havia aprendido a curtir a cadência da constância.

A profundidade das olheiras não permitia que se duvidasse. Houvera um desmoronamento interior. Agora ela se via sem complementos, pura e simples como planejada. Eu disse simples? Perdão. Não havia como ELA ser simples. Era intensa e desmedida. Passional. Irreversível. Mas havia acabado de se descobrir assim.

Antes, tinha sido invisível. A cada anulação da vontade, estrangulava a autenticidade. E dava pilhas novas ao seu controle remoto. ELA? Não existia. Era imagem e era atitudes automáticas.


Não, não. Calma. Ela não foi sempre nula. Um dia ela já foi amor. Já fez uma ilusão brilhar no olhar, dela e... Dele. Ah, ele. As pilhas desse controle remoto estavam mais fortes que nunca e acabavam carregando as dela. Rotina, aquela maldita. Compromissos. Deveres. Responsabilidades. Carreira. Ou simplesmente o canal  do romance faliu. Ela então ativou o controle remoto. Mas ela sabe, e ela sempre soube. Que não era só aquilo: nem só amor ou só controle remoto. O principal sempre foi ela.

Não era fácil e não era tranquilo. Doía aprender a deixar fluir toda uma personalidade sem o apoio e a estabilidade de ser amor. Era quase insuportável assumir opiniões e posições quando todos duvidavam.

Então ela decidiu. Olhou para a navalha e sorriu, com o alívio de uma consciência leve: o fio da navalha cumpriria sua função, finalmente. O braço pareceu pesar uma tonelada enquanto o erguia. A mesma tonelada que saiu de suas costas quando fez o primeiro corte.

Aquele primeiro cacho que caiu, aquela primeira mecha dos cabelos escuros indo ao chão libertou um fluxo incontrolável de pessimismos e maledicências acumuladas que não deviam estar com ela. A cada corte, a partir de então, toda ela era leveza. Os cabelos, sempre padrão, meigos, delicados, iam tomando forma. A forma de uma personalidade forte e definida. Iam desenhando no espelho a mulher que se tornara.

Quando todas as lágrimas haviam sido choradas naquele processo e o cabelo finalmente revelava quem ela era, pôde então sorrir. Reconheceu-se no espelho e no brilho de um olhar intenso, sincero e matreiro. Reconheceu-se em cachos mais curtos, menos controlados, mais livres, mais selvagens e menos comedidos. Disse olá para uma nova vida. Reconheceu-se, enfim. Reconheceu-se, toda.

Não era mais amor. Não era mais SÓ amor. Era muitas. Era o que tivesse vontade.